terça-feira, 27 de outubro de 2009

Três flechas

I


Quarta-feira da semana passada, de lá de cima da Cadedral da Sé, uma gárgula ganhou vida e atirou flechas ao leu, encomenda do chefe emitida com urgência no dia anterior. Não deu no jornal. Os poucos transeuntes do centro, nessa hora, apertavam o passo e em nada repararam. O tráfego terrestre, como o aéreo, escoou inalterado. Não houve desastres de vulto, sofrimentos ruidosos ou alegria excessiva em virtude do ocorrido. Mas o fato é que a danada da criaturinha, às 0:00:00 hrs da quarta-feira passada, dia 21/10/2009, ensaiou um daqueles pulinhos estáticos, gargalhou baixinho e deu três fatídicos disparos.

No primeiro, cuspiu uma flechinha preguiçosa, cujo destino veio a lume já na quinta-feira, às 2 da manhã, na pista de dança de uma birosca moderna da R. Augusta.

As setas infernais, como se sabe, são invisíveis e atravessam matéria muito mais densa do que o concreto. Fazem, no entanto, um barulho considerável. Por isso é de se admirar que, de toda a população do bar, nem mesmo o mais detalhista dos habitués a tenha visto em seu trajeto sinuoso. Pode ter sido também a banda, que enebriava as plausíveis testemunhas, tocando alto o contrabaixo bomp-bomp, sob o trompete ganindo cachorro e a cantora engrolando francês de quebrados quadris e mãozinha leve na cintura. Em todo caso, só quem viu foi a própria moça atingida, amiga perdida mais bêbada da aniversariante. Coitada! Mal se desvencilhou do doidão de dread, foi presa fácil do tiro do arqueiro: levou certeiro no colo moreno palpitante, bem debaixo da correntinha de único pingente ostentando discreta e prateadamente uma letra C. Como também bebia o favorito da noite (vodka/redbull), tomou banho da mistura "wake up", braços, queixo, tudo ensopado. Além do referido pingente e a franja escorrendo, cobrindo a boca mecânica dizendo "você viu o que aconteceu?" bem de pertinho pra alguém que balançou a cabeça e continuou a dançar

II


Já a segunda seta demorou mais. Caiu na sexta.

Diabos são informados. Pelo menos é o que vi naquele filme do Denzel Washington em que um arcanjo do mal toma as pessoas pelos segredos, se hospeda em seus corpos e sai cantando Rolling Stones. Este, espertinho, já sabia da nova lei anti-fumo. Por isso, dois dias antes, alçou o arquinho a 76º59', retesou a corda de tripa de bode e, vlém, mandou ver. E lá estava um amigo do meu primo no bar do Joca Vereador, por volta das 04:00:00 hrs, pedindo uma cerveja, tranquilo, quando, rolando macio da área de fumantes, doravante sempre descoberta, chega a alvejada.

Desta vez o efeito do tiro foi mais drástico. A seta estava inoculada com uma poção que a transformou, da cintura para baixo, em uma empilhadeira bulldozer. Da cintura pra cima, estalava a bluzinha com estampas cubistas, pois o tronco, ora inchado, quase cedera, impelido com vigor pelas engrenagens que o sustentavam. Só o cabelo continuava impecável, preso com elástico num coque pedrita, de modo que, distraídos, os convivas nada perceberam. Só esse meu indireto informante é que notou, quando subitamente a carne fina do joelho esfolar na borracha sintética, o calorzinho subindo um segundo depois. Virou, olhou; era ela.


III


Vinha com os olhos acesos, trocando cores sob a luz de estrobo. Não falou nada. Só chegou bem de pertinho dele para insinuar uma dancinha (não se sabe como, pois tratores não fazem curvas em espaço tão exíguo). E esteve prestes a engoli-lo, silenciosa e elegantementeno justo momento em que os habitantes do boteco cantavam alto Michael Jackson, assim prestando homenagem ao rei do pop à sua maneira. O que aliás teria acontecido, não fosse, é claro, a argúcia interioriana deste meu compadre - hoje como ontem, vivo, bem aventurado e prestes a me contar a história, que ouvi no dia seguinte.

Como eu disse antes, os diabos são informados. Outro dia, numa entrevista no canal sete, vi um deles falando sobre transmigração das almas. Devem saber muito de metafísica, portanto. Letrados eles também são - afinal, fizeram inúmeras incursões pela literatura. Chegaram sem problemas até mesmo à idade da alquimia, dos segredos elementares da matéria e dos números arábicos. Já quanto à ciência, parecem ter óbvias limitações. O que dirá em administração!?

Foi o que descobri quando, avisado dos primeiros atentados, peguei uma câmera e fui para as ruas descolar um furo. Calculei que, se houvesse regularidade nas coisas do mal assim como há nas de Deus, sábado seria meu dia, ou melhor, minha madrugada de sorte. Só quando cheguei na Av. Paulista, local altamente provável de ataque, é que me dei conta da armadilha, ou então da falta de planejamento daquele cujo nome não se diz. Ele deve ter mesmo um parafuso a menos (ao contrário da miss empilhadeira). Uma volta pela terra ensolarada definitivamente lhe faria bem, pois o calor e a umidade dos quintos dos infernos não devem fazer muito bem pra cabeça.

IV


Mas, enfim, vou contar meu fiasco.

Cheguei cedinho ao local, antes mesmo que o primeiro camelô montasse sua banquinha. Armei meu tripé, coloquei o bonesinho In Dog we trust e fiquei por ali, uma duas, três horas. A manhã nasceu preguiçosa como sempre, esquentado aos poucos as encostas dos prédios, montando alentada sua sinfonia de ruídos. Até que, num dado momento, quando o sol estava quase a pino, aquela considerada a mais democrática das vitrines da América Latina foi integralmente tomada por bilhões e bilhões de modernetes e culturetes, via de regra andando aos pares. Meu furo tinha-se eclipsado, eu percebera. Mas ainda fiquei por ali, o cotovelo na coxa do bandeirante, dando como ele as costas à Consolação, sem ver no horizonte o Paraíso, sol na moleira, que esquentava mais graças à veleidade do cão.

Pudera. Se o primeiro ataque se deu por volta das 2h da manhã e o segundo às 4h, o terceiro só poderia ter acontecido às 6h da manhã, momento em que o sol, embora fraco, já teria preenchido de luz todo aquele envidraçado corredor. E como todos sabem, enviar arqueiro a essa hora do dia seria assinar acordo de abrir fogo com Deus, coisa que não se faz. Nem mesmo o homem em pessoa seria tão louco...

Esgotado, voltei para casa e desmontei na cama. Dormi pouco.

V


Quando no dia seguinte a tarde ainda raiava forte, me senti mais refeito de toda a presepada e contente por ainda dispor do fim de semana para colocar a cabeça no lugar. Desci rápido as escadas do prédio e cruzei a praça aqui em frente de casa, um pouco mais movimentada do que de costume. Em seguida, passei na padaria, comprei um café com leite pra levar, passei a mão num jornal, sentei-me no banco.

O sono devia ter me feito bem, pois o dia respirava tão vivo quanto meu corpo agora refeito da tensão prolongada do fim de semana. Era gostoso o peso do jornal gordo de sábado no meu colo, esperando para me trazer as notícias do dia. Eu também mal podia esperar. Arranquei uma a uma as páginas laminadas que anunciavam geladeiras, fogões, panelas de pressão, celulares, mp3 player, uma grande produção musical e modernizações nos caixas eletrônicos do Unibanco. E ali, debaixo das notícias de ataques terroristas no Iraque, da investigação da mais recente obra do PAC, das chamadas para o caderno teen e do anúncio da reformulação do caderno de cultura, podia-se finalmente ler algo em letra miúda, anunciando o tema do caderno Cotidiano.

Leia depoimentos sobre projeção fantasma no Richard Harris. Grupo de teatro é escomungado por Dom Paulo Evaristo. Apreendidos câmeras e laptops contrabandeados que serviram para edição do pornô Três devassas no altar. Devotos de Santa Cecília, Santa Cruz e Madalena planejam manifestação pacífica de protesto neste domingo.

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