quinta-feira, 21 de maio de 2009

Turismo em Ouro Preto

I

Na entrada da mina do Chico Rei, o garçom reclama do vento que não deixa ele enrolar suas namoradeiras em paz.

Segura com uma mão, pela cabeça, o busto negro e teso; com a outra, agarra e tenta esticar uma folha de jornal.

Da cozinha do restaurante alguém grita “Tropeiro, mesa dez”, enquanto turistas famintos batem a trilha que leva da boca da mina para as mesas do restaurante.

II

Breu na catedral.
Breu nas gentes dentro da catedral. Pilar, pilares.

Tsssssssc...

Santos de resina acendem fósforos na escuridão.

E então, sussurando, o guia nos conta, em meio à apresentação de praxe, a história da segunda porta da igreja.

Chama-se “quebra-vento”, invenção antiga adaptada pelas igrejas de Minas Gerais (particularmente as de Ouro Preto) com o intuito de inibir o intruso, que costuma apagar as velas nos dias de culto.

Foram instaladas depois de 1962.
Depois do roubo de 1962.

III

O colégio do Caraça foi construído em meados do século XVIII, em pleno vigor pombalino, por um misterioso frade lazarista suspeito de ter tido parte no atentado contra o irmão do imperador.

O Caraça não é um distrito de Ouro Preto.

Fica um pouco além de Mariana, depois de Catas Altas, cujo acesso se dá pela Estrada Real, tão esburacada quanto a paisagem carcomida pela Vale do Rio Doce.

Hoje em dia... quer dizer...

... agora que ele não é mais seminário, não abriga os filhos da elite mineira, não fabrica presidentes da República (como Arthur Bernardes e Afonso Pena) e deixou de contratar a preço de varejo formandos da UFOP advindos de outras paragens, como fazia há pouco tempo - conta-nos, segurando na cabeça o chapéu, um ouropretano professor de piano da UFMG, em prosa solta, na soleira da porta da pequena escola de música da cidade - ...

... virou reserva ecológica.

Tem trilhas de quatro horas de duração, hospeda turistas do mundo inteiro e serve uma comida honesta e saudável. Recomendável. Digestiva.

À noite, enquanto os turistas descansam na sala de TV, as estrelas mineiras debruçam das janelas do céu. E, então, da boca do Caraça escapam lobos famintos que devorariam com prazer todo o parque, os turistas, a população local e o colégio.

Mas não o fazem.

Ao invés disso, roem pacientemente os ossos de frango que os padres arrastam com os pés na escadaria da Capela do Colégio, dia após dia.

Foto após foto.

IV


Saía o almoço na República de Ouro Preto. As decanas – mortas – eram azulejos empilhados na parede. Caladas, as princesinhas devoravam sacos e sacos de jujuba.

Findo o prato:

- Dona Dora, senta aqui que eu já acabei. Ponta de sofá é muito ruim.

- Não, filho. Eu fico aqui no meu lugar de sempre.


V

Segunda-feira, subimos o morro do Alto da Cruz para conhecer a Igreja de Sta Ifigênia, construída pela irmandade dos homens pretos.

No último quarteirão, um moleque nos esperava, fitando por debaixo da aba do boné. Tinha os olhos vermelhos, estralados e parecia conversar com alguém que não aparecia além da curva, no topo da ladeira.

Mal recobramos o fôlego, foi logo estendendo a mão veloz e se apresentado como guia turístico.

Falava rápido, com alguma ansiedade, uma fala clara, bem pesada, a custo informativa, muito diferente da dos guias do centro, a não ser pelo fato de trazer em cada silêncio um aleijãozinho de malícia.

No guia do Pilar, o silêncio era uma forma de pressionar para acelerar nossa visita e logo entabular a próxima parte da apresentação. Servia também para medir o êxito das piadas desmistificadoras e averiguar se aceitávamos como fidedignas as informações.

O deste, não. Era diferente.

Quando saímos da igreja, Sta Ifigênia lançou-nos um sorrisinho irônico (oposto, em simpatia, ao do roceiro do mercadinho que nos ensinou o caminho). Parecia com isso nos juntar injustamente às demais irmandades, à horda de turistas atulhados de lembrancinhas, aos estudantes indelicados das repúblicas, aos ricos comerciantes locais, e aos irritantes e cosmopolitas donos de pousadas que, cada um por si, como nos dissera Seu Chico (vigia noturno da pousada São Francisco de Paula), faziam em conjunto a vida na cidade tão difícil, “mesmo fora de temporada”.

Não, Sta Ifigênia.

Deus nos guarde de mostrar a cara de pau turística no teu templo de madeira. Se transpomos teus umbrais é para comungar um pouco com a tua gente que ao invés do dízimo te oferecia as dores da semana.

Trouxemos, aliás, nossos pesares, que deixamos aqui, para ti, em holocausto.

Chegamos à noite, quando o nevoeiro roçava outras torres mais vistosas e envolvia sem carinho teus rosados e humildes espaldares. Mais abaixo é onde nos encontrávamos, Sta. Ifigênia, errando pelos corredores de Vila Rica, enquanto as portas, unânimes, davam-nos as costas.

É verdade que tínhamos em pensamento não a tua imagem e sim abrigo mais profano, onde pudéssemos encostar nossos pertences e, quem sabe?, cear. Mas observe a Sra. que, passados três dias e três noites de nossa chegada, ao invés de nos dirigirmos ao Rosário, fomos atraídos às tuas alturas e subimos calados, como se contássemos as pedras do chão e ouvíssemos, a cada passo, a conversa miúda dos que hoje jazem em teus braços.

No dia anterior, o ouropretano professor de piano em BH fechou a conversa com o ambíguo bordão: “A extração de ouro deixou para Vila Rica as igrejas e os Aleijadinhos; a de ferro e bauxita, deixou para Ouro Preto as favelas e o narcotráfico”.

Salve, Sta. Ifigênia.

Salve.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Algumas manhãs

As manhãs são raras em minha vida. Costumo adiá-las sempre que posso. E me arrisco a dizer que o faço de propósito, mesmo sem perceber.

Não que eu não me prepare para o dia ou não coloque protocolarmente o corpo em posição ereta, gire a testa para o sol e me dispa das roupas pesadas da noite anterior. A dada hora da manhã - tendendo a variar para mais tarde, sempre – executo os mesmos movimentos instintivos que põem em marcha rumo a um novo dia toda a população movida a sonhos, impulsos nervosos, oxigênio e derivados de matéria orgânica na face da Terra.

Algo em mim, no entanto, costuma enguiçar. Minhas pupilas falham em perceber o claro como claro. Meus ouvidos se engolfam na massa indistinta dos motores e os lençóis deixam rastros no meu peito. Afinal é como se todo o meu corpo fosse uma membrana, latejando em vinte direções diferentes, mergulhada sem aviso no rio das horas apressadas em passar.

Quando eu era pequeno, era pior. A ideia do “dia seguinte” doía em mim quase que fisicamente, a ponto de eu ignorá-la. Por isso, fingia que a noite era uma espécie de papel-carbono sobre o qual bastava escrever por cima para que o “dia anterior” nunca acabasse. Na “manhã seguinte”, soletraria o que a mão sonolenta tinha me ditado, guardando comigo o que o “tempo” ameaçava roubar.

Em vão.

Findos os últimos ardis do demônio matinal, o que haveria no papel seria um rabisco miúdo, que logo se estiraria, tomando o espaço de duas, três, quatro linhas, perdendo os contornos, sumindo página acima, para reaparecer à esquerda, à direita. E eu terminaria a “leitura” triste, com a noite reencontrada na forma alheia de um borrão.

Eram poucas e vagarosas as minhas manhãs, minhas verdadeiras manhãs.

Logo cedinho eu acordava, punha um pé no chão e algo já não ia bem; sentia, de pronto, o incômodo da sensação morna, estufada, aderente do carpete. O que eu queria era o chão de verdade, o chão gelado e liso da sacada de nosso pequeno apartamento. Por isso fugia dos cômodos intumescidos, atraído pelos reflexos da luz no corredor. E seguindo-os era como se as próprias paredes girassem sobre si mesmas formando um outro lugar mais amplo e iluminado.

De repente estava às voltas com a sala, aquela cabana de papel borrifada aqui e a ali por clarões de luz. Cruzava-a de uma vez para fazer correr com as mãos pequenas as duas portas da sacada. E ali, no mais-que-aberto-espaço-de-fora, algo além do vidro se abria, permanecendo assim tempo suficiente para que eu despertasse sob o halo do céu azul coalhado de algodão. Sabia que era sábado, não porque faltasse o bip agudo do despertador, mas porque lá embaixo a avenida roncava macio. Apoiava meus pés nas grades brancas meio enferrujadas da sacada e esperava o sol terminar seu trabalho de despertar, mansinho, com os olhos pequenos desabrochando na claridade. Restituído à sua forma de costume, meu corpo se esquentava no calor fresco do dia que, por pouco, não acordara comigo.

Mas também podia acontecer de minha vontade de acordar ficar presa no visco do sono. Isso era ruim, ameaçava as raras manhãs; contra isso, havia, no entanto, um ritual. Nessas ocasiões, mesmo que fosse arriscado ficar parado, eu não corria. Torcia-me todo num passinho de leve até a soleira da porta e, depois, de um estirão, me lançava até a sala, temeroso de que a trama dos fios do carpete envolvesse os meus pés tão miúdos. Minha meta era aquela pequena faixa de pedra-sabão distinguindo a sala da sacada. E quando eu a alcançava, ficava por ali, de pé, até sentir com método o frio subir pelas canelas, depois pelas coxas e enfim pela espinha. E assim permanecia, na mesma e imperturbável posição, imóvel, de olhos fechados, esperando o mundo entrar aos poucos pelas janelas e ir montando devagar sua confusão de barulhos. Um a um os sons do descanso da cidade recompunham em mim o que a noite dissolvia: o sopro ondulado dos carros, a nuvem fuliginosa dos ônibus; a lâmina fria das freadas bruscas; o tclic-tclac do quebra-queixo e a voz forte e grave dos homens do sindicato. E desperto, enfim, tudo agora retomava seu ofício de existir; noite após, em dia novo.

Mas havia também a vezes em que as manhãs me escapavam por completo. Era um mau sinal, a suspeita de que algo em mim não iria despertar. O resto do corpo se despregaria do sono, preguiçoso, sem pulso, contrafeito. Os olhos de repente se abririam, mas o quarto permaneceria escondido na mesma e imperturbável escuridão, as paredes engolfadas em cinza opaco. As pernas se enroscariam sob o peso da coberta e até a cama cresceria, adquirindo durante a noite largura e cumprimento exatos para que a delicada combinação de movimentos de alavanca que faz com que todo homem saia de seu repouso girasse em falso.

Nunca houve reza, verso, frase ou canção que me arrancasse do transe das manhãs dormentes. As janelas não se abriam por si só e todos os sonhos e pensamentos da noite anterior não poderiam me acudir, pois nasceriam, como eu, do que estava para além do torpor. Entregue às manhãs dormentes, eu seria apenas um simples borrão, formando uma concha aqui, um rochedo ali e quatro riscos além uma curva em “s” desmanchada pelo fio de luz escorrendo da janela do quarto.

E viveria em mim apenas o desejo de recuperar, na folha do dia seguinte, a impressão de que algo ali estivesse se movendo, aos poucos, com o vagar miúdo, pequeno e irrequieto de algumas manhãs...

A bruxa

a Emil Farhat

Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse neste minuto,
que recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes uma confidência
exalando-se de um homem.

Carlos Drummond de Andrade, "José", 1942.