terça-feira, 27 de outubro de 2009

Três flechas

I


Quarta-feira da semana passada, de lá de cima da Cadedral da Sé, uma gárgula ganhou vida e atirou flechas ao leu, encomenda do chefe emitida com urgência no dia anterior. Não deu no jornal. Os poucos transeuntes do centro, nessa hora, apertavam o passo e em nada repararam. O tráfego terrestre, como o aéreo, escoou inalterado. Não houve desastres de vulto, sofrimentos ruidosos ou alegria excessiva em virtude do ocorrido. Mas o fato é que a danada da criaturinha, às 0:00:00 hrs da quarta-feira passada, dia 21/10/2009, ensaiou um daqueles pulinhos estáticos, gargalhou baixinho e deu três fatídicos disparos.

No primeiro, cuspiu uma flechinha preguiçosa, cujo destino veio a lume já na quinta-feira, às 2 da manhã, na pista de dança de uma birosca moderna da R. Augusta.

As setas infernais, como se sabe, são invisíveis e atravessam matéria muito mais densa do que o concreto. Fazem, no entanto, um barulho considerável. Por isso é de se admirar que, de toda a população do bar, nem mesmo o mais detalhista dos habitués a tenha visto em seu trajeto sinuoso. Pode ter sido também a banda, que enebriava as plausíveis testemunhas, tocando alto o contrabaixo bomp-bomp, sob o trompete ganindo cachorro e a cantora engrolando francês de quebrados quadris e mãozinha leve na cintura. Em todo caso, só quem viu foi a própria moça atingida, amiga perdida mais bêbada da aniversariante. Coitada! Mal se desvencilhou do doidão de dread, foi presa fácil do tiro do arqueiro: levou certeiro no colo moreno palpitante, bem debaixo da correntinha de único pingente ostentando discreta e prateadamente uma letra C. Como também bebia o favorito da noite (vodka/redbull), tomou banho da mistura "wake up", braços, queixo, tudo ensopado. Além do referido pingente e a franja escorrendo, cobrindo a boca mecânica dizendo "você viu o que aconteceu?" bem de pertinho pra alguém que balançou a cabeça e continuou a dançar

II


Já a segunda seta demorou mais. Caiu na sexta.

Diabos são informados. Pelo menos é o que vi naquele filme do Denzel Washington em que um arcanjo do mal toma as pessoas pelos segredos, se hospeda em seus corpos e sai cantando Rolling Stones. Este, espertinho, já sabia da nova lei anti-fumo. Por isso, dois dias antes, alçou o arquinho a 76º59', retesou a corda de tripa de bode e, vlém, mandou ver. E lá estava um amigo do meu primo no bar do Joca Vereador, por volta das 04:00:00 hrs, pedindo uma cerveja, tranquilo, quando, rolando macio da área de fumantes, doravante sempre descoberta, chega a alvejada.

Desta vez o efeito do tiro foi mais drástico. A seta estava inoculada com uma poção que a transformou, da cintura para baixo, em uma empilhadeira bulldozer. Da cintura pra cima, estalava a bluzinha com estampas cubistas, pois o tronco, ora inchado, quase cedera, impelido com vigor pelas engrenagens que o sustentavam. Só o cabelo continuava impecável, preso com elástico num coque pedrita, de modo que, distraídos, os convivas nada perceberam. Só esse meu indireto informante é que notou, quando subitamente a carne fina do joelho esfolar na borracha sintética, o calorzinho subindo um segundo depois. Virou, olhou; era ela.


III


Vinha com os olhos acesos, trocando cores sob a luz de estrobo. Não falou nada. Só chegou bem de pertinho dele para insinuar uma dancinha (não se sabe como, pois tratores não fazem curvas em espaço tão exíguo). E esteve prestes a engoli-lo, silenciosa e elegantementeno justo momento em que os habitantes do boteco cantavam alto Michael Jackson, assim prestando homenagem ao rei do pop à sua maneira. O que aliás teria acontecido, não fosse, é claro, a argúcia interioriana deste meu compadre - hoje como ontem, vivo, bem aventurado e prestes a me contar a história, que ouvi no dia seguinte.

Como eu disse antes, os diabos são informados. Outro dia, numa entrevista no canal sete, vi um deles falando sobre transmigração das almas. Devem saber muito de metafísica, portanto. Letrados eles também são - afinal, fizeram inúmeras incursões pela literatura. Chegaram sem problemas até mesmo à idade da alquimia, dos segredos elementares da matéria e dos números arábicos. Já quanto à ciência, parecem ter óbvias limitações. O que dirá em administração!?

Foi o que descobri quando, avisado dos primeiros atentados, peguei uma câmera e fui para as ruas descolar um furo. Calculei que, se houvesse regularidade nas coisas do mal assim como há nas de Deus, sábado seria meu dia, ou melhor, minha madrugada de sorte. Só quando cheguei na Av. Paulista, local altamente provável de ataque, é que me dei conta da armadilha, ou então da falta de planejamento daquele cujo nome não se diz. Ele deve ter mesmo um parafuso a menos (ao contrário da miss empilhadeira). Uma volta pela terra ensolarada definitivamente lhe faria bem, pois o calor e a umidade dos quintos dos infernos não devem fazer muito bem pra cabeça.

IV


Mas, enfim, vou contar meu fiasco.

Cheguei cedinho ao local, antes mesmo que o primeiro camelô montasse sua banquinha. Armei meu tripé, coloquei o bonesinho In Dog we trust e fiquei por ali, uma duas, três horas. A manhã nasceu preguiçosa como sempre, esquentado aos poucos as encostas dos prédios, montando alentada sua sinfonia de ruídos. Até que, num dado momento, quando o sol estava quase a pino, aquela considerada a mais democrática das vitrines da América Latina foi integralmente tomada por bilhões e bilhões de modernetes e culturetes, via de regra andando aos pares. Meu furo tinha-se eclipsado, eu percebera. Mas ainda fiquei por ali, o cotovelo na coxa do bandeirante, dando como ele as costas à Consolação, sem ver no horizonte o Paraíso, sol na moleira, que esquentava mais graças à veleidade do cão.

Pudera. Se o primeiro ataque se deu por volta das 2h da manhã e o segundo às 4h, o terceiro só poderia ter acontecido às 6h da manhã, momento em que o sol, embora fraco, já teria preenchido de luz todo aquele envidraçado corredor. E como todos sabem, enviar arqueiro a essa hora do dia seria assinar acordo de abrir fogo com Deus, coisa que não se faz. Nem mesmo o homem em pessoa seria tão louco...

Esgotado, voltei para casa e desmontei na cama. Dormi pouco.

V


Quando no dia seguinte a tarde ainda raiava forte, me senti mais refeito de toda a presepada e contente por ainda dispor do fim de semana para colocar a cabeça no lugar. Desci rápido as escadas do prédio e cruzei a praça aqui em frente de casa, um pouco mais movimentada do que de costume. Em seguida, passei na padaria, comprei um café com leite pra levar, passei a mão num jornal, sentei-me no banco.

O sono devia ter me feito bem, pois o dia respirava tão vivo quanto meu corpo agora refeito da tensão prolongada do fim de semana. Era gostoso o peso do jornal gordo de sábado no meu colo, esperando para me trazer as notícias do dia. Eu também mal podia esperar. Arranquei uma a uma as páginas laminadas que anunciavam geladeiras, fogões, panelas de pressão, celulares, mp3 player, uma grande produção musical e modernizações nos caixas eletrônicos do Unibanco. E ali, debaixo das notícias de ataques terroristas no Iraque, da investigação da mais recente obra do PAC, das chamadas para o caderno teen e do anúncio da reformulação do caderno de cultura, podia-se finalmente ler algo em letra miúda, anunciando o tema do caderno Cotidiano.

Leia depoimentos sobre projeção fantasma no Richard Harris. Grupo de teatro é escomungado por Dom Paulo Evaristo. Apreendidos câmeras e laptops contrabandeados que serviram para edição do pornô Três devassas no altar. Devotos de Santa Cecília, Santa Cruz e Madalena planejam manifestação pacífica de protesto neste domingo.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Onde o pulso faz a curva

Segunda-feira à noite, chuva fina impertinente. Um cigarro, dois cigarros, três, quatro, fim. Preguiça de sair de casa. Dez horas, onze horas, meia-noite: o siricotico do maço acabado atinge enfim o limite do insuportável.

Capote, meias, pau no porquinho, hey ho.

Corifeu em silêncio. Indo, só o chlap-chlap dos tênis furados, agora ensopados, e o tilintar de trinta e quatro moedas. Trocando em miúdos, cinquenta passos e um LM azul. Depois, de volta pra toca - a cabeça, que está lá, espera anuviada.

Um sino agudo soa suas doze badaladas sempre de quatro em quatro. Marotos acentos no tempo fraco.

Não vem da igreja, que fica pra lá da Providência, longe alguns quarteirões deste pedaço inóspito de concreto, esta incansável betoneira, este contínuo canteiro de obras interrompidas a cada fim de gestão. Não. Nada retine neste rebotalho de bairro em cruzamento até 2012 - quando enfim chegará a nova linha do metrô, arrematado pela prefeitura por alguns cobres.

Não. Vem do triângulo ausente, marcado na Casa do Norte, mesmo quando não toca. Mesmo quando ninguém dança e universitários aos gritos bebem cerveja embora o violeiro, voz grave, rouca e doce, mão precisa, Tim Maia nas cordas de aço.

"Pois não?"

Faço o pedido. O swing anima brincadeiras.

"Desculpa, assaltei a igreja..."
"Tem problema. A gente até prefere..."

Minhas mãos se enterram, as duas, no mesmo bolso. Três moedas caem no chão; as demais, verto com cuidado na mão do balconista sério e calmo (uns fiapos de linha branca vão junto; eu cato, meio envergonhado).

"Tá aqui, trinta e quatro de dez. Passou da meia-noite, tô ruim. Melhor contar..."

Ele me olha firme. Não sei se ficou bravo com a brincadeira realmente sem maldade pelo contrário. Finalmente me responde:

"Precisa contar, não. Traga mais, sempre...".

Um turbilhão azul corta a curva da avenida e some no escuro. O bip metálico da campainha se alonga. Nada paira no ar denso da noite do subúrbio, a não ser uma espiral contínua, sem pulso, estirando-se daqui até o Rio Pequeno e logo sumindo nas vielas da São Remo.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Cena de farol

Linha Anhagabaú, Teodoro Sampaio morro acima. Cena de farol, vista através de vidro com fuligem. Tem alguém sentado na calçada, ali fora, entre a manicure e a padaria. Os braços abraçam as pernas, as pernas escondem o tronco, a cabeça se esconde no vão entre ambos.

Será um mendigo?

Os cabelos loiros estão bem lavados, a roupa é decente (blusa de lã trabalhada, calça arrastão, havaianas azuis). De repente, levanta o rosto. Brincos, menina, adolescente, 20 anos no máximo. Tem sardinhas. Aperta os olhos azuis protegendo-os do sol, a boca repuxa. Parece que está acordando.

Motores acelerando, os carros da frente começam a se mover. O farol se abre e o ônibus ainda não saiu do lugar. Ela ainda está ali, encolhida, agora com o queixo enterrado nos antebraços (o sol continua forte e é ruim acordar, assim, com a luz de chapa na cara). O cenho estremece, fica corado. Ela desarma os braços, solta as pernas e abaixa um pouco a cabeça. E então esfrega forte o rosto (agora muito vermelho) com a manga da blusa.

Sinto um repelão que me puxa para frente. A menina começa a deslizar para trás. Duas longas pernas, calça jeans, bloqueiam minha vista.

Manicure, padaria, rara visão da Fradique Coutinho sem trânsito, loja de móveis modernos. Minha cabeça faz giro de 45º.

As pernas sumiram.

A mão se estende no ar em forma de concha.

(e não está chovendo)

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Há de chover na Guanabara...

O sol raia alto na Guanabara. Faz um dia azul, aberto, sem sombra de nuvens. E Isabel olha para o mar, de onde aponta, no horizonte, uma barca inglesa. Tem do lado de si um negro, que a protege do sol agreste com um guarda-chuva.

Passados alguns segundos, surge a primeira nuvem. Ao mesmo tempo, a embarcação se assenta à costa e dela sai Erwin Gillian, enviado da coroa. Parece estar cansado da viagem. Mas nem por isso deixa de inspecionar a vista com uma luneta, de pesar a areia com as mãos e, é claro, de respirar fundo a brisa leve que acaricia em silêncio as então numerosas dunas daquela bela franja de mar.

Logo em seguida, termina os cálculos (ou o descanso, não se sabe bem qual), aproxima-se de Isabel e então pergunta:

- Quanto é?

A princesa faz que não ouve. E só quando o estrangeiro está prestes a repetir a pergunta, responde, com ar brejeiro, confiado:

- Meu caro forasteiro... essas coisas não se decidem com valores, assim, em seco, como vós fazeis no velho mundo. Aqui é mister haver maior confiablidade....

Cutuca o negro, que desloca a sombrinha de modo que deixe o sol bater em seu colo generoso.

- Admirastes ainda há pouco estas montanhas às minhas costas. Pois bem. Se quereis saber, já estão loteadas. E onde quer que vossos olhos pousem...

O inglês se constrange. Está cor-de-rosa, afinal, faz 40 graus.

- Escutai-me? Para onde quer que olheis, temos riquezas jorrando à superfície, como se de cântaros transbordassem. Graças mil, que venderemos, é claro, mas não sem sabedoria. Por isso, não nos logreis com transações selvagens, sim?

O inglês se recompõe.

- O que quereis, afinal?

- Já vos disse. Um parceiro... com a ajuda do qual devassar esse véu de mistérios..., diz Isabel, corando um pouco e afinando a voz, como se encerrasse uma pequena frase de maxixe.

O negro, de parte, parece sorrir. Há pouco estava circunspecto, sombrio até. Ninguém ali poderia dizer, mas é a primeira vez que ele vê o mar desde que aportou no Brasil. E o dia não poderia ser mais belo.

- Que sois insensata! E o que nos autoriza a confiarmos nossos recursos a vós, assim, ao vosso alvitre e sem qualquer garantia? Não tendes nada de mais material para afiançar a troca... digo... a colaboração?

O inglês olha para o negro, cioso de que ele tenha compreendido a gafe. Este já não sorri mais. Recobra a fisionomia anterior, mesmo que seu rosto pareça agora um pouco mais anuviado.

- Está bem. Se insistis em nos tratar como a um fazendeiro qualquer, eu vos digo: todas as cabeças que nascerem... deste ano em diante. Sabeis que é isso que vossa raínha quer, não? Está de bom tamanho?

Faz-se um silêncio de vinte segundos, ou mais. Lançam-se olhares desconfiados...

- Tem graça...

- Qual?

- Perdestes o juízo, princesa? Vossos enviados têm se recusado terminantemente a ceder nesse quesito nas mesas de negociação e agora me acenais com disparates? Só podeis estar, como dizeis no rênconcavo a norte... man-jan-do de mim....

A princesa ri do estranja, que fica sem entender nada. Daí a pouco, acena para o negro, que se retira, em direção ao mar. Em seguida, atalha, com voz mansa:

- Viveis no embigo do mundo e, ainda assim, não chegas a divisar nossas razões? Pois então não sabeis que os ares mudam por aqui? E hoje já não temos como nos socorrer adoçando vossos chás da cinco... graças ao vosso maquinário, aliás...

O inglês se enfurece, sente-se injuriado.

Neste momento, começa a boiar, pesado, um cinturão de nuvens negras que ultrapassa devagar a linha do morro. Vem como que do interior do país, de seu ventre.

O inglês retruca, quase perdendo a compostura:

-E com o núbio aos vossos pés, quereis me fazer crer que temeis por tua bela cabeça? Demais, o mundo não gira ao passo de lumbus e convados...

Ela ri de novo. Olha para a mata da Tijuca, depois para o negro, que volta da praia com um fardo nas costas, para o qual o inglês não atenta. Prossegue.

- Esquecei o que acabo de dizer. Tenho uma proposta a oferecer-vos.

- Está certo. Se quereis dizê-la de uma vez...

- Ei-la.

Tira um papel dobrado em quatro do mesmo colo que há pouco constrangia o pequeno homem do norte.

-Se assinardes este documento, eu vos garanto que, em pouco, toda esta terra virgem desmanchará na infusão de vossas cumbucas.

O inglês dá uma risadinha de canto de boca.

- ....e podereis fazer dela o que quiserdes. O único pendor que vos exijo é apenas...

Olha com ar esperto para o negro.

-...o de garantir vossa colaboração com os ventos da liberdade, que começam soprar por aqui...

O azul do céu desaparece e ninguém ali parece lembrar do calor escaldante que fazia há cerca de meia-hora. Já o entendimento do inglês não se fechou com o tempo. E, embora ainda se recomponha da destemperança de há pouco, ele percebe na hora o que a princesa quer dizer. Interessa-se, sem deixar de desconfiar.

Ajeita o paletó e responde.

- Não sei... os temores com que justificastes a transação não se sustentam.

Cede a um olhar indecoroso para as montanhas em volta. E continua...

- Afinal... tendes a temer mais a nós, não é mesmo?

Nesse momento, Isabel vira o corpo de leve, para a esquerda, de maneira que o interlocutor possa ver, num mesmo quadro, seu rosto e o Pão-de-açucar. Abaixo da linha do horizonte, o negro seca a imagem do Cristo que o negro levou para banhar ao mar enquanto a conversa corria solta e só o sol era testemunha.

- Não, não é certo. Ensinaste-nos a lição, Sir - diz Isabel, compungida.

- Não sei se alcanço vosso pensamento...

- Digo, quem no-la ensinou foi Ele -aponta para o cristozinho -, a de viver com o coração leve, sem o pesado fardo da desconfiança. Sem ceder aos impulsos da terra, onde, como bem vês, tilintam os falsos guizos da leviandade.

Diz isso com voz sincera, ainda que o céu escuro imprima a seu rosto um quê de malícia. Prossegue, mais emocionada.

- Sim, caro Erwin. Permite que eu vos chame assim?

O inglês, contrafeito, assente com a cabeça, ainda que não entenda muito bem como diabos a princesa pode ter lhe tratado pelo nome se a conversa começou sem as introduções de praxe.

Nesse momento, para dissipar o mal-estar e dar relevo à proposta de Isabel, o negro, célere, tira não se sabe de onde uma viola. E então, a princesa começa a cantar a famosa ária de Bizet.

Voa, voa, sabiá rebelde
que a brisa do norte
beija e acalanta...

O céu volta a se abrir de novo e da floresta da tijuca ouve-se cantos e ritmos compassados batidos no atabaque. Parecem agitar o semblante do inglês, que ganha uma expressão indefinível. De sua boca sai algo que um brasileiro reconheceria como um soluço. Era um esgar, na verdade, e durou fração de segundo, se tanto. Satisfeito, ele manda chamar o capitão para que testemunhe o acordo. Já Isabel cutuca o negro, que tira da bolsa de juta papel almaço, dois pedaços de crayon, e se posiciona de frente à princesa, para retratá-la. Enquanto isso, ela se posta de frente para o mar, tira do sutiã uma caneta, deixa o vento brincar um pouco com seu vestido e, finalmente, estende a mão para Sir. Gillian.

Quando o inglês vai firmar o negócio, ela retira a mão e o interrompe, dizendo:

_ Veja só... nem bem chegaram, já espantaram o bom tempo... parece que há de chover na Guanabara...

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Turismo em Ouro Preto

I

Na entrada da mina do Chico Rei, o garçom reclama do vento que não deixa ele enrolar suas namoradeiras em paz.

Segura com uma mão, pela cabeça, o busto negro e teso; com a outra, agarra e tenta esticar uma folha de jornal.

Da cozinha do restaurante alguém grita “Tropeiro, mesa dez”, enquanto turistas famintos batem a trilha que leva da boca da mina para as mesas do restaurante.

II

Breu na catedral.
Breu nas gentes dentro da catedral. Pilar, pilares.

Tsssssssc...

Santos de resina acendem fósforos na escuridão.

E então, sussurando, o guia nos conta, em meio à apresentação de praxe, a história da segunda porta da igreja.

Chama-se “quebra-vento”, invenção antiga adaptada pelas igrejas de Minas Gerais (particularmente as de Ouro Preto) com o intuito de inibir o intruso, que costuma apagar as velas nos dias de culto.

Foram instaladas depois de 1962.
Depois do roubo de 1962.

III

O colégio do Caraça foi construído em meados do século XVIII, em pleno vigor pombalino, por um misterioso frade lazarista suspeito de ter tido parte no atentado contra o irmão do imperador.

O Caraça não é um distrito de Ouro Preto.

Fica um pouco além de Mariana, depois de Catas Altas, cujo acesso se dá pela Estrada Real, tão esburacada quanto a paisagem carcomida pela Vale do Rio Doce.

Hoje em dia... quer dizer...

... agora que ele não é mais seminário, não abriga os filhos da elite mineira, não fabrica presidentes da República (como Arthur Bernardes e Afonso Pena) e deixou de contratar a preço de varejo formandos da UFOP advindos de outras paragens, como fazia há pouco tempo - conta-nos, segurando na cabeça o chapéu, um ouropretano professor de piano da UFMG, em prosa solta, na soleira da porta da pequena escola de música da cidade - ...

... virou reserva ecológica.

Tem trilhas de quatro horas de duração, hospeda turistas do mundo inteiro e serve uma comida honesta e saudável. Recomendável. Digestiva.

À noite, enquanto os turistas descansam na sala de TV, as estrelas mineiras debruçam das janelas do céu. E, então, da boca do Caraça escapam lobos famintos que devorariam com prazer todo o parque, os turistas, a população local e o colégio.

Mas não o fazem.

Ao invés disso, roem pacientemente os ossos de frango que os padres arrastam com os pés na escadaria da Capela do Colégio, dia após dia.

Foto após foto.

IV


Saía o almoço na República de Ouro Preto. As decanas – mortas – eram azulejos empilhados na parede. Caladas, as princesinhas devoravam sacos e sacos de jujuba.

Findo o prato:

- Dona Dora, senta aqui que eu já acabei. Ponta de sofá é muito ruim.

- Não, filho. Eu fico aqui no meu lugar de sempre.


V

Segunda-feira, subimos o morro do Alto da Cruz para conhecer a Igreja de Sta Ifigênia, construída pela irmandade dos homens pretos.

No último quarteirão, um moleque nos esperava, fitando por debaixo da aba do boné. Tinha os olhos vermelhos, estralados e parecia conversar com alguém que não aparecia além da curva, no topo da ladeira.

Mal recobramos o fôlego, foi logo estendendo a mão veloz e se apresentado como guia turístico.

Falava rápido, com alguma ansiedade, uma fala clara, bem pesada, a custo informativa, muito diferente da dos guias do centro, a não ser pelo fato de trazer em cada silêncio um aleijãozinho de malícia.

No guia do Pilar, o silêncio era uma forma de pressionar para acelerar nossa visita e logo entabular a próxima parte da apresentação. Servia também para medir o êxito das piadas desmistificadoras e averiguar se aceitávamos como fidedignas as informações.

O deste, não. Era diferente.

Quando saímos da igreja, Sta Ifigênia lançou-nos um sorrisinho irônico (oposto, em simpatia, ao do roceiro do mercadinho que nos ensinou o caminho). Parecia com isso nos juntar injustamente às demais irmandades, à horda de turistas atulhados de lembrancinhas, aos estudantes indelicados das repúblicas, aos ricos comerciantes locais, e aos irritantes e cosmopolitas donos de pousadas que, cada um por si, como nos dissera Seu Chico (vigia noturno da pousada São Francisco de Paula), faziam em conjunto a vida na cidade tão difícil, “mesmo fora de temporada”.

Não, Sta Ifigênia.

Deus nos guarde de mostrar a cara de pau turística no teu templo de madeira. Se transpomos teus umbrais é para comungar um pouco com a tua gente que ao invés do dízimo te oferecia as dores da semana.

Trouxemos, aliás, nossos pesares, que deixamos aqui, para ti, em holocausto.

Chegamos à noite, quando o nevoeiro roçava outras torres mais vistosas e envolvia sem carinho teus rosados e humildes espaldares. Mais abaixo é onde nos encontrávamos, Sta. Ifigênia, errando pelos corredores de Vila Rica, enquanto as portas, unânimes, davam-nos as costas.

É verdade que tínhamos em pensamento não a tua imagem e sim abrigo mais profano, onde pudéssemos encostar nossos pertences e, quem sabe?, cear. Mas observe a Sra. que, passados três dias e três noites de nossa chegada, ao invés de nos dirigirmos ao Rosário, fomos atraídos às tuas alturas e subimos calados, como se contássemos as pedras do chão e ouvíssemos, a cada passo, a conversa miúda dos que hoje jazem em teus braços.

No dia anterior, o ouropretano professor de piano em BH fechou a conversa com o ambíguo bordão: “A extração de ouro deixou para Vila Rica as igrejas e os Aleijadinhos; a de ferro e bauxita, deixou para Ouro Preto as favelas e o narcotráfico”.

Salve, Sta. Ifigênia.

Salve.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Algumas manhãs

As manhãs são raras em minha vida. Costumo adiá-las sempre que posso. E me arrisco a dizer que o faço de propósito, mesmo sem perceber.

Não que eu não me prepare para o dia ou não coloque protocolarmente o corpo em posição ereta, gire a testa para o sol e me dispa das roupas pesadas da noite anterior. A dada hora da manhã - tendendo a variar para mais tarde, sempre – executo os mesmos movimentos instintivos que põem em marcha rumo a um novo dia toda a população movida a sonhos, impulsos nervosos, oxigênio e derivados de matéria orgânica na face da Terra.

Algo em mim, no entanto, costuma enguiçar. Minhas pupilas falham em perceber o claro como claro. Meus ouvidos se engolfam na massa indistinta dos motores e os lençóis deixam rastros no meu peito. Afinal é como se todo o meu corpo fosse uma membrana, latejando em vinte direções diferentes, mergulhada sem aviso no rio das horas apressadas em passar.

Quando eu era pequeno, era pior. A ideia do “dia seguinte” doía em mim quase que fisicamente, a ponto de eu ignorá-la. Por isso, fingia que a noite era uma espécie de papel-carbono sobre o qual bastava escrever por cima para que o “dia anterior” nunca acabasse. Na “manhã seguinte”, soletraria o que a mão sonolenta tinha me ditado, guardando comigo o que o “tempo” ameaçava roubar.

Em vão.

Findos os últimos ardis do demônio matinal, o que haveria no papel seria um rabisco miúdo, que logo se estiraria, tomando o espaço de duas, três, quatro linhas, perdendo os contornos, sumindo página acima, para reaparecer à esquerda, à direita. E eu terminaria a “leitura” triste, com a noite reencontrada na forma alheia de um borrão.

Eram poucas e vagarosas as minhas manhãs, minhas verdadeiras manhãs.

Logo cedinho eu acordava, punha um pé no chão e algo já não ia bem; sentia, de pronto, o incômodo da sensação morna, estufada, aderente do carpete. O que eu queria era o chão de verdade, o chão gelado e liso da sacada de nosso pequeno apartamento. Por isso fugia dos cômodos intumescidos, atraído pelos reflexos da luz no corredor. E seguindo-os era como se as próprias paredes girassem sobre si mesmas formando um outro lugar mais amplo e iluminado.

De repente estava às voltas com a sala, aquela cabana de papel borrifada aqui e a ali por clarões de luz. Cruzava-a de uma vez para fazer correr com as mãos pequenas as duas portas da sacada. E ali, no mais-que-aberto-espaço-de-fora, algo além do vidro se abria, permanecendo assim tempo suficiente para que eu despertasse sob o halo do céu azul coalhado de algodão. Sabia que era sábado, não porque faltasse o bip agudo do despertador, mas porque lá embaixo a avenida roncava macio. Apoiava meus pés nas grades brancas meio enferrujadas da sacada e esperava o sol terminar seu trabalho de despertar, mansinho, com os olhos pequenos desabrochando na claridade. Restituído à sua forma de costume, meu corpo se esquentava no calor fresco do dia que, por pouco, não acordara comigo.

Mas também podia acontecer de minha vontade de acordar ficar presa no visco do sono. Isso era ruim, ameaçava as raras manhãs; contra isso, havia, no entanto, um ritual. Nessas ocasiões, mesmo que fosse arriscado ficar parado, eu não corria. Torcia-me todo num passinho de leve até a soleira da porta e, depois, de um estirão, me lançava até a sala, temeroso de que a trama dos fios do carpete envolvesse os meus pés tão miúdos. Minha meta era aquela pequena faixa de pedra-sabão distinguindo a sala da sacada. E quando eu a alcançava, ficava por ali, de pé, até sentir com método o frio subir pelas canelas, depois pelas coxas e enfim pela espinha. E assim permanecia, na mesma e imperturbável posição, imóvel, de olhos fechados, esperando o mundo entrar aos poucos pelas janelas e ir montando devagar sua confusão de barulhos. Um a um os sons do descanso da cidade recompunham em mim o que a noite dissolvia: o sopro ondulado dos carros, a nuvem fuliginosa dos ônibus; a lâmina fria das freadas bruscas; o tclic-tclac do quebra-queixo e a voz forte e grave dos homens do sindicato. E desperto, enfim, tudo agora retomava seu ofício de existir; noite após, em dia novo.

Mas havia também a vezes em que as manhãs me escapavam por completo. Era um mau sinal, a suspeita de que algo em mim não iria despertar. O resto do corpo se despregaria do sono, preguiçoso, sem pulso, contrafeito. Os olhos de repente se abririam, mas o quarto permaneceria escondido na mesma e imperturbável escuridão, as paredes engolfadas em cinza opaco. As pernas se enroscariam sob o peso da coberta e até a cama cresceria, adquirindo durante a noite largura e cumprimento exatos para que a delicada combinação de movimentos de alavanca que faz com que todo homem saia de seu repouso girasse em falso.

Nunca houve reza, verso, frase ou canção que me arrancasse do transe das manhãs dormentes. As janelas não se abriam por si só e todos os sonhos e pensamentos da noite anterior não poderiam me acudir, pois nasceriam, como eu, do que estava para além do torpor. Entregue às manhãs dormentes, eu seria apenas um simples borrão, formando uma concha aqui, um rochedo ali e quatro riscos além uma curva em “s” desmanchada pelo fio de luz escorrendo da janela do quarto.

E viveria em mim apenas o desejo de recuperar, na folha do dia seguinte, a impressão de que algo ali estivesse se movendo, aos poucos, com o vagar miúdo, pequeno e irrequieto de algumas manhãs...

A bruxa

a Emil Farhat

Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse neste minuto,
que recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes uma confidência
exalando-se de um homem.

Carlos Drummond de Andrade, "José", 1942.