quarta-feira, 13 de maio de 2009

Algumas manhãs

As manhãs são raras em minha vida. Costumo adiá-las sempre que posso. E me arrisco a dizer que o faço de propósito, mesmo sem perceber.

Não que eu não me prepare para o dia ou não coloque protocolarmente o corpo em posição ereta, gire a testa para o sol e me dispa das roupas pesadas da noite anterior. A dada hora da manhã - tendendo a variar para mais tarde, sempre – executo os mesmos movimentos instintivos que põem em marcha rumo a um novo dia toda a população movida a sonhos, impulsos nervosos, oxigênio e derivados de matéria orgânica na face da Terra.

Algo em mim, no entanto, costuma enguiçar. Minhas pupilas falham em perceber o claro como claro. Meus ouvidos se engolfam na massa indistinta dos motores e os lençóis deixam rastros no meu peito. Afinal é como se todo o meu corpo fosse uma membrana, latejando em vinte direções diferentes, mergulhada sem aviso no rio das horas apressadas em passar.

Quando eu era pequeno, era pior. A ideia do “dia seguinte” doía em mim quase que fisicamente, a ponto de eu ignorá-la. Por isso, fingia que a noite era uma espécie de papel-carbono sobre o qual bastava escrever por cima para que o “dia anterior” nunca acabasse. Na “manhã seguinte”, soletraria o que a mão sonolenta tinha me ditado, guardando comigo o que o “tempo” ameaçava roubar.

Em vão.

Findos os últimos ardis do demônio matinal, o que haveria no papel seria um rabisco miúdo, que logo se estiraria, tomando o espaço de duas, três, quatro linhas, perdendo os contornos, sumindo página acima, para reaparecer à esquerda, à direita. E eu terminaria a “leitura” triste, com a noite reencontrada na forma alheia de um borrão.

Eram poucas e vagarosas as minhas manhãs, minhas verdadeiras manhãs.

Logo cedinho eu acordava, punha um pé no chão e algo já não ia bem; sentia, de pronto, o incômodo da sensação morna, estufada, aderente do carpete. O que eu queria era o chão de verdade, o chão gelado e liso da sacada de nosso pequeno apartamento. Por isso fugia dos cômodos intumescidos, atraído pelos reflexos da luz no corredor. E seguindo-os era como se as próprias paredes girassem sobre si mesmas formando um outro lugar mais amplo e iluminado.

De repente estava às voltas com a sala, aquela cabana de papel borrifada aqui e a ali por clarões de luz. Cruzava-a de uma vez para fazer correr com as mãos pequenas as duas portas da sacada. E ali, no mais-que-aberto-espaço-de-fora, algo além do vidro se abria, permanecendo assim tempo suficiente para que eu despertasse sob o halo do céu azul coalhado de algodão. Sabia que era sábado, não porque faltasse o bip agudo do despertador, mas porque lá embaixo a avenida roncava macio. Apoiava meus pés nas grades brancas meio enferrujadas da sacada e esperava o sol terminar seu trabalho de despertar, mansinho, com os olhos pequenos desabrochando na claridade. Restituído à sua forma de costume, meu corpo se esquentava no calor fresco do dia que, por pouco, não acordara comigo.

Mas também podia acontecer de minha vontade de acordar ficar presa no visco do sono. Isso era ruim, ameaçava as raras manhãs; contra isso, havia, no entanto, um ritual. Nessas ocasiões, mesmo que fosse arriscado ficar parado, eu não corria. Torcia-me todo num passinho de leve até a soleira da porta e, depois, de um estirão, me lançava até a sala, temeroso de que a trama dos fios do carpete envolvesse os meus pés tão miúdos. Minha meta era aquela pequena faixa de pedra-sabão distinguindo a sala da sacada. E quando eu a alcançava, ficava por ali, de pé, até sentir com método o frio subir pelas canelas, depois pelas coxas e enfim pela espinha. E assim permanecia, na mesma e imperturbável posição, imóvel, de olhos fechados, esperando o mundo entrar aos poucos pelas janelas e ir montando devagar sua confusão de barulhos. Um a um os sons do descanso da cidade recompunham em mim o que a noite dissolvia: o sopro ondulado dos carros, a nuvem fuliginosa dos ônibus; a lâmina fria das freadas bruscas; o tclic-tclac do quebra-queixo e a voz forte e grave dos homens do sindicato. E desperto, enfim, tudo agora retomava seu ofício de existir; noite após, em dia novo.

Mas havia também a vezes em que as manhãs me escapavam por completo. Era um mau sinal, a suspeita de que algo em mim não iria despertar. O resto do corpo se despregaria do sono, preguiçoso, sem pulso, contrafeito. Os olhos de repente se abririam, mas o quarto permaneceria escondido na mesma e imperturbável escuridão, as paredes engolfadas em cinza opaco. As pernas se enroscariam sob o peso da coberta e até a cama cresceria, adquirindo durante a noite largura e cumprimento exatos para que a delicada combinação de movimentos de alavanca que faz com que todo homem saia de seu repouso girasse em falso.

Nunca houve reza, verso, frase ou canção que me arrancasse do transe das manhãs dormentes. As janelas não se abriam por si só e todos os sonhos e pensamentos da noite anterior não poderiam me acudir, pois nasceriam, como eu, do que estava para além do torpor. Entregue às manhãs dormentes, eu seria apenas um simples borrão, formando uma concha aqui, um rochedo ali e quatro riscos além uma curva em “s” desmanchada pelo fio de luz escorrendo da janela do quarto.

E viveria em mim apenas o desejo de recuperar, na folha do dia seguinte, a impressão de que algo ali estivesse se movendo, aos poucos, com o vagar miúdo, pequeno e irrequieto de algumas manhãs...

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