O sol raia alto na Guanabara. Faz um dia azul, aberto, sem sombra de nuvens. E Isabel olha para o mar, de onde aponta, no horizonte, uma barca inglesa. Tem do lado de si um negro, que a protege do sol agreste com um guarda-chuva.
Passados alguns segundos, surge a primeira nuvem. Ao mesmo tempo, a embarcação se assenta à costa e dela sai Erwin Gillian, enviado da coroa. Parece estar cansado da viagem. Mas nem por isso deixa de inspecionar a vista com uma luneta, de pesar a areia com as mãos e, é claro, de respirar fundo a brisa leve que acaricia em silêncio as então numerosas dunas daquela bela franja de mar.
Logo em seguida, termina os cálculos (ou o descanso, não se sabe bem qual), aproxima-se de Isabel e então pergunta:
- Quanto é?
A princesa faz que não ouve. E só quando o estrangeiro está prestes a repetir a pergunta, responde, com ar brejeiro, confiado:
- Meu caro forasteiro... essas coisas não se decidem com valores, assim, em seco, como vós fazeis no velho mundo. Aqui é mister haver maior confiablidade....
Cutuca o negro, que desloca a sombrinha de modo que deixe o sol bater em seu colo generoso.
- Admirastes ainda há pouco estas montanhas às minhas costas. Pois bem. Se quereis saber, já estão loteadas. E onde quer que vossos olhos pousem...
O inglês se constrange. Está cor-de-rosa, afinal, faz 40 graus.
- Escutai-me? Para onde quer que olheis, temos riquezas jorrando à superfície, como se de cântaros transbordassem. Graças mil, que venderemos, é claro, mas não sem sabedoria. Por isso, não nos logreis com transações selvagens, sim?
O inglês se recompõe.
- O que quereis, afinal?
- Já vos disse. Um parceiro... com a ajuda do qual devassar esse véu de mistérios..., diz Isabel, corando um pouco e afinando a voz, como se encerrasse uma pequena frase de maxixe.
O negro, de parte, parece sorrir. Há pouco estava circunspecto, sombrio até. Ninguém ali poderia dizer, mas é a primeira vez que ele vê o mar desde que aportou no Brasil. E o dia não poderia ser mais belo.
- Que sois insensata! E o que nos autoriza a confiarmos nossos recursos a vós, assim, ao vosso alvitre e sem qualquer garantia? Não tendes nada de mais material para afiançar a troca... digo... a colaboração?
O inglês olha para o negro, cioso de que ele tenha compreendido a gafe. Este já não sorri mais. Recobra a fisionomia anterior, mesmo que seu rosto pareça agora um pouco mais anuviado.
- Está bem. Se insistis em nos tratar como a um fazendeiro qualquer, eu vos digo: todas as cabeças que nascerem... deste ano em diante. Sabeis que é isso que vossa raínha quer, não? Está de bom tamanho?
Faz-se um silêncio de vinte segundos, ou mais. Lançam-se olhares desconfiados...
- Tem graça...
- Qual?
- Perdestes o juízo, princesa? Vossos enviados têm se recusado terminantemente a ceder nesse quesito nas mesas de negociação e agora me acenais com disparates? Só podeis estar, como dizeis no rênconcavo a norte... man-jan-do de mim....
A princesa ri do estranja, que fica sem entender nada. Daí a pouco, acena para o negro, que se retira, em direção ao mar. Em seguida, atalha, com voz mansa:
- Viveis no embigo do mundo e, ainda assim, não chegas a divisar nossas razões? Pois então não sabeis que os ares mudam por aqui? E hoje já não temos como nos socorrer adoçando vossos chás da cinco... graças ao vosso maquinário, aliás...
O inglês se enfurece, sente-se injuriado.
Neste momento, começa a boiar, pesado, um cinturão de nuvens negras que ultrapassa devagar a linha do morro. Vem como que do interior do país, de seu ventre.
O inglês retruca, quase perdendo a compostura:
-E com o núbio aos vossos pés, quereis me fazer crer que temeis por tua bela cabeça? Demais, o mundo não gira ao passo de lumbus e convados...
Ela ri de novo. Olha para a mata da Tijuca, depois para o negro, que volta da praia com um fardo nas costas, para o qual o inglês não atenta. Prossegue.
- Esquecei o que acabo de dizer. Tenho uma proposta a oferecer-vos.
- Está certo. Se quereis dizê-la de uma vez...
- Ei-la.
Tira um papel dobrado em quatro do mesmo colo que há pouco constrangia o pequeno homem do norte.
-Se assinardes este documento, eu vos garanto que, em pouco, toda esta terra virgem desmanchará na infusão de vossas cumbucas.
O inglês dá uma risadinha de canto de boca.
- ....e podereis fazer dela o que quiserdes. O único pendor que vos exijo é apenas...
Olha com ar esperto para o negro.
-...o de garantir vossa colaboração com os ventos da liberdade, que começam soprar por aqui...
O azul do céu desaparece e ninguém ali parece lembrar do calor escaldante que fazia há cerca de meia-hora. Já o entendimento do inglês não se fechou com o tempo. E, embora ainda se recomponha da destemperança de há pouco, ele percebe na hora o que a princesa quer dizer. Interessa-se, sem deixar de desconfiar.
Ajeita o paletó e responde.
- Não sei... os temores com que justificastes a transação não se sustentam.
Cede a um olhar indecoroso para as montanhas em volta. E continua...
- Afinal... tendes a temer mais a nós, não é mesmo?
Nesse momento, Isabel vira o corpo de leve, para a esquerda, de maneira que o interlocutor possa ver, num mesmo quadro, seu rosto e o Pão-de-açucar. Abaixo da linha do horizonte, o negro seca a imagem do Cristo que o negro levou para banhar ao mar enquanto a conversa corria solta e só o sol era testemunha.
- Não, não é certo. Ensinaste-nos a lição, Sir - diz Isabel, compungida.
- Não sei se alcanço vosso pensamento...
- Digo, quem no-la ensinou foi Ele -aponta para o cristozinho -, a de viver com o coração leve, sem o pesado fardo da desconfiança. Sem ceder aos impulsos da terra, onde, como bem vês, tilintam os falsos guizos da leviandade.
Diz isso com voz sincera, ainda que o céu escuro imprima a seu rosto um quê de malícia. Prossegue, mais emocionada.
- Sim, caro Erwin. Permite que eu vos chame assim?
O inglês, contrafeito, assente com a cabeça, ainda que não entenda muito bem como diabos a princesa pode ter lhe tratado pelo nome se a conversa começou sem as introduções de praxe.
Nesse momento, para dissipar o mal-estar e dar relevo à proposta de Isabel, o negro, célere, tira não se sabe de onde uma viola. E então, a princesa começa a cantar a famosa ária de Bizet.
Voa, voa, sabiá rebelde
que a brisa do norte
beija e acalanta...
O céu volta a se abrir de novo e da floresta da tijuca ouve-se cantos e ritmos compassados batidos no atabaque. Parecem agitar o semblante do inglês, que ganha uma expressão indefinível. De sua boca sai algo que um brasileiro reconheceria como um soluço. Era um esgar, na verdade, e durou fração de segundo, se tanto. Satisfeito, ele manda chamar o capitão para que testemunhe o acordo. Já Isabel cutuca o negro, que tira da bolsa de juta papel almaço, dois pedaços de crayon, e se posiciona de frente à princesa, para retratá-la. Enquanto isso, ela se posta de frente para o mar, tira do sutiã uma caneta, deixa o vento brincar um pouco com seu vestido e, finalmente, estende a mão para Sir. Gillian.
Quando o inglês vai firmar o negócio, ela retira a mão e o interrompe, dizendo:
_ Veja só... nem bem chegaram, já espantaram o bom tempo... parece que há de chover na Guanabara...
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Um comentário:
Gostei bastante. Pareceu-me cinematográfico, em especial a ambientação. Muito bom mesmo.
(Que domínio de vocabulário!)
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